TEXTO E FOTOS POR TERESA GARCIA, DO PARQUE NACIONAL DE ITATIAIA
ESPECIAL PARA PLURALE
Reportagem é apuração e muitas vezes negociação. Foram inúmeras trocas de mensagens e áudios, uma reunião virtual, longas conversas até chegarmos num acordo: teríamos exclusividade na cobertura da expedição que pesquisaria as primeiras pinturas rupestres encontradas no Estado do Rio.
As imagens, agora tornadas públicas, estão numa pequena gruta na parte alta do Parque Nacional do Itatiaia. Partiríamos no dia 19 de março, véspera do equinócio do outono. Equinócio é quando o dia e a noite têm a mesma duração: doze horas de luz, doze horas de escuridão. Entre os pesquisadores havia um arqueoastrônomo, um profissional especializado em estudar o alinhamento de pinturas rupestres com o movimento celeste.
Tivemos poucos dias de preparação. Ainda estava muito quente no Rio de Janeiro, mas a tarefa era resgatar roupas de frio, sacos de dormir, luvas e cachecóis de lã esquecidos no fundo do armário. Os termômetros no Parque Nacional do Itatiaia já marcavam baixas temperaturas durante a madrugada.
O combinado: levantar muito cedo no dia 19 de março, dirigir 240 quilômetros e aguardar a chegada dos arqueólogos num local chamado Garganta do Registro, na divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro. A Garganta do Registro, a 1669 metros de altitude, é o último ponto com sinal de internet antes do Parque Nacional do Itatiaia. Cheguei 30 minutos antes dos pesquisadores. Ainda não os conhecia pessoalmente. Bastou um café quente e eles surgiram. Do café emendamos num almoço em horário atípico, ainda pela manhã, porque aquela seria a última refeição dos próximos três dias. Dali em diante, a alimentação se resumiria a barras de cereais, frutas, pão de forma, castanhas, biscoitos e às calóricas massas instantâneas.
Fim do almoço, início da última etapa da viagem. Mais 14 quilômetros de estrada de terra até o portão de o à parte alta do Parque Nacional do Itatiaia. Lá em cima já havia um denso nevoeiro e a manhã parecia um dia fechado de inverno. Nos hospedamos no Abrigo Rebouças, uma edificação erguida com pedras onde há um alojamento para turistas e um anexo istrado pelo ICMBio, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Lá ficaram os pesquisadores.
Na chegada fomos recebidos por um funcionário que se tornou um dos personagens centrais dessa história. Andrés Rodrigo Conquista é montanhista e trabalha na supervisão da parte alta do parque. Certo dia embarcou na boleia de um caminhão e atravessou a estrada pedregosa que corta a reserva ambiental. Do alto viu uma florada de lírios vermelhos. Desceu para fotografar e reparou numa formação rochosa que fica num local onde não há trilhas para turistas. Sentiu-se um desbravador e circulou a pequena gruta. Foi assim que ele descobriu as primeiras pinturas rupestres em território fluminense. São desenhos em formas geométricas e formas zoomórficas, que lembram figuras de animais.
Uma das imagens também se parece com um astro, possivelmente o sol.
Um dos arqueólogos que fez parte da comitiva é especialista em pinturas rupestres. Carlos Gabriel Paes Dias diz estar convencido de que as pinturas foram feitas por povos antigos, porque elas apresentam características muito semelhantes às imagens encontradas em outras regiões brasileiras. São figuras feitas nas cores vermelha e amarela, com imagens sobrepostas e distribuídas de forma irregular. Tudo isso caracteriza o que os arqueólogos chamam de tradição Planalto. Imagens semelhantes foram encontradas em Andrelândia, em Minas Gerais, e no interior de São Paulo. Carlos Dias afirma que essa descoberta indica que os povos originários deviam se comunicar pelo território brasileiro mais do que imaginamos.
Durante os dias em que permanecemos no parque, os arqueólogos exploraram vários trechos e recolheram material lítico (fragmentos de rochas e minerais) para análise. Ainda será necessário obter autorização para fazer escavações no local, à procura de vestígios de antigos povos, para realizar testes de carbono 14. Só assim será possível determinar em que data aquelas pinturas foram feitas. Mas é certo que estão ali há milhares de anos: 3, 5, 8 mil anos ou mais, suspeitam os arqueólogos. Todos foram muito cautelosos em seus comentários. É certo que ainda é cedo para fazer qualquer afirmação, mas a descoberta abre novos horizontes e perspectivas para a arqueologia brasileira.
A gruta onde estão as pinturas rupestres fica a cinquenta metros da estrada. É um local de o relativamente fácil, mas não há trilha aberta para chegar lá. Tivemos que driblar buracos, subir em pedras e, na caminhada, torci meu pé. ei uma noite em claro com dores fortes, enquanto ouvia a chuva desabar no telhado do abrigo Rebouças. Às cinco da manhã estávamos todos despertos e – pra minha surpresa – meu pé direito voltou a se movimentar, como se nada tivesse acontecido. Restou um pequeno inchaço, porém indolor. Era 20 de março, equinócio de outono, mas os primeiros raios de sol não venceram as fortes nuvens que cobriam o parque. Então, no dia seguinte, com o céu completamente limpo, o arqueoastrônomo Marcos Davi Duarte montou um tripé na entrada da gruta, mirou sua luneta na direção do Pico das Agulhas Negras e aguardou o sol nascer. O que se viu foi uma cena impressionante. Os primeiros raios de luz atingiram, como uma flecha, a imagem do sol desenhada na gruta. Os raios solares formaram um vértice, afastando a sombra da noite de cima das pinturas rupestres.
Ainda serão necessários novos estudos, mas tudo indica que naquela gruta os povos originários montaram um aparelho astronômico, afirma Davi Duarte.
Aquela pequena formação rochosa pode ter servido de abrigo para nossos anteados, de um ponto de observação para a caça e também de um local com referências de arte e astronomia, descortinando a capacidade extraordinária do ser humano de se adaptar, de observar e se relacionar com o meio ambiente.
Para mim foi uma experiência profissional completa, resultando em uma reportagem para a revista Piauí e vídeos para as redes sociais. Mas me despertou também algo pessoal, uma inquietação particular, que me faz pensar como uma manifestação cultural feita por nossos anteados atravessou a infinita linha do tempo e me afetou, milhares e milhares de anos depois.
Parque divulga nota - Em nota divulgada ao longo desta semana, a direção do Parque Nacional do Itatiaia frisou que a data exata das pinturas ainda não foi determinada, mas as análises estão sendo conduzidas por especialistas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E que até a conclusão das pesquisas, a visitação ao sítio arqueológico não está autorizada e o local está sendo monitorado para garantir sua preservação.
Ainda de acordo com a nota divulgada, os registros apresentam formas geométricas, zoomorfas e bicromia, com tons de vermelho e amarelo-alaranjado e um dos desenhos se destaca pela semelhança com um lagarto visto de cima. Os traços das pinturas possuem similaridade com a Tradição São Francisco, encontrada entre Minas Gerais e Bahia. Se essa relação for confirmada, este será o registro mais ao sul dessa tradição no Brasil, ampliando as evidências das conexões culturais entre povos de diferentes regiões.
"A preservação desse patrimônio é essencial para que possamos entender melhor a história das ocupações humanas no Brasil. Os estudos irão fornecer informações valiosas sobre as culturas que habitaram a região de Itatiaia e suas relações com outros grupos", afirma Felipe Cruz Mendonça, Chefe do Parque Nacional do Itatiaia/ICMBio.