Por Maurette Brandt, Colunista de Plurale
A longa fila verde-amarela de aparente calma que seguia - escoltada pela polícia militar – rumo à Praça dos Três Poderes em Brasília, no último domingo, dia 8 de janeiro de 2023, transformou-se numa horda enfurecida diante de um frágil gradil guardado por alguns pobres soldados, impotentes para conter a multidão.
Não era um protesto. Não era eata. Não havia pauta de reivindicações. Havia, sim, a barbárie. E um ódio sem limites, que se expressaria, logo a seguir, no mais violento ataque que mãos humanas já fizeram às instituições do Estado Democrático de Direito brasileiro.
Pessoas que, numa ação orquestrada, planejada nos mínimos detalhes, amplamente financiada e possivelmente “facilitada” pelos órgãos de segurança da capital, se deslocaram até Brasília em centenas de ônibus, para destruir e aviltar o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados.
Não bastava entrar; era preciso quebrar, destruir, subjugar a estrutura física dos principais prédios históricos que marcaram a nova Capital Federal, construída por Juscelino Kubitschek de Oliveira, planejada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa e inaugurada em 1960.
Ao olhar a fila que caminhava na contramão da avenida que levava à Praça, um estremecimento me percorreu o corpo. A ordem aparente antecipava tensão e medo. E o desembestar da manada, diante da pequena e atônita guarda, revelou o pior. Pessoas correndo e gritando palavras de ordem, não sem parar para registrar medíocres "vitórias" no celular: “Conseguimos! Chegamos aqui para tomar o que é nosso!”
(Nosso? Como assim, cara-pálida?)
Os prédios dos Três Poderes pertencem ao Brasil e a todos os brasileiros, estejam eles onde estiverem. E tudo o que há dentro deles também. Ali está a memória de ado, presente e a perspectiva de futuro; relíquias de nossa história, exemplares de arte brasileira, mobiliário de grande valor, presentes ofertados por representações diplomáticas de nações visitantes, documentos em tramitação. Processos, leis e decretos que dizem respeito ao funcionamento da istração pública, ao Senado, à Câmara dos Deputados, à Presidência da República, ao Supremo Tribunal Federal.
Com que direito uma horda sem controle, que prega “a volta da ditadura” e “intervenção militar”, com base em ouvir falar – a grande maioria sem conhecer a negra história do nosso ado ainda recente, até a redemocratização -, se acha no direito de considerar “seus” os bens e símbolos da nação brasileira e destruí-los sem o menor respeito?
O nome disto é Barbárie. Aliás, pode-se citar vários nomes para o mesmo absurdo: Terror. Golpismo. Brutalidade. Boçalidade. A lista é longa.
Se havia algum propósito nessa “ação” descontrolada, era apenas destruir, dilapidar, descarregar a raiva e a decepção pelo fato do candidato que apoiavam não ter vencido as eleições democráticas que levaram ao poder o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Um relógio raro que foi presenteado à Família Real Portuguesa, que o trouxe para o Brasil, foi simplesmente quebrado e jogado no chão como se fosse uma cópia barata. Só há dois relógios como este no mundo. O outro está na França.
Quadros valiosos, como As Mulatas, de Di Cavalcanti (foto), foram perfurados. Paineis de Athos Bulcão foram danificados, assim como inúmeras obras de diversos artistas nacionais. Nada escapou à fúria e à ignorância de uma manada inconsequente e brutalizada, sem interesse pela cultura e pelos valores da Nação brasileira.
Como ousam, essas pessoas, se intitular “patriotas” e sequestrar nossas cores e nossas bandeiras? Até o brasão da República foi arrancado de uma parede do Supremo Tribunal Federal e colocando em uma cadeira, também rara, do lado de fora do prédio.
Um patriota ama o seu país e seus compatriotas; não destrói, não fere e nem mata um irmão. Não danifica nem dilapida os prédios públicos. Respeita a arte e a cultura. Respeita, sobretudo a liberdade de cada um para viver como quiser, de acordo com seus próprios valores pessoais.
Um patriota não destrói, não brutaliza, não elimina o diferente. Não sufoca a alegria e o prazer de viver do outro. Um patriota que ama o seu país respeita a democracia e convive na pluralidade.
Pessoas que desrespeitam os bens públicos, a arte, a cultura e a liberdade de pensamento são fascistas, nazistas. Na Itália, fascismo é crime. Na Alemanha, nazismo é crime. E há uma forte razão para isso: as duas ideologias foram centrais para fomentar a Segunda Guerra Mundial e causar uma destruição sem limites no mundo de então.
O que assistimos, estarrecidos, no último domingo, é algo que o Estado democrático de direito não pode tolerar de modo algum. Insufladas por líderes doentios, sem cultura, sem capacidade e com desprezo pela vida humana, para dizer o mínimo, essas pessoas acreditam na barbárie, na repressão, nas armas e na morte como formas de coagir a população a pensar como elas.
Uma das que se exibiu na internet disse, num vídeo: “Conseguimos! Tomamos o poder!”
Ora vejam só.
Poder não se toma, se conquista. E na democracia, esta conquista se dá pelo voto livre e popular. O poder que hoje está depositado nas mãos do Presidente eleito, diplomado e empossado Luís Inácio Lula da Silva, lhe foi conferido pela maioria do povo brasileiro. Se outro fosse o resultado, outro presidente teria sido diplomado e empossado. Cabe, portanto, àqueles que discordam, respeitar o resultado das urnas e as regras do Estado democrático de direito.
As obras de arte aviltadas serão restauradas. O mobiliário valioso também. As marcas da barbárie ficam, porém, como feridas na alma brasileira. A ideia de um golpe de estado na base do touro à unha, felizmente, fracassou, graças à ação imediata das instituições vivas e fortes do Estado democrático de direito, empenhadas em punir exemplarmente os terroristas destruidores e todo o grupo de financiadores que concebeu e montou essa rede de destruição.
É preciso que cada um deles saiba e tenha consciência de que será exemplarmente punido e terá que pagar pelos crimes cometidos contra a Nação brasileira.
É preciso, também, separar o joio do trigo: a horda de destruidores que assolou Brasília representa muito pouco, diante da dimensão da população brasileira. Acredito que a maioria dos cidadãos é sensata e não aprova os horrores que testemunhamos no dia 8 de janeiro. A maioria convive em sociedade acima de ideologias, de candidatos e de interesses, sejam eles quais forem. Que esta minoria que menosprezou os símbolos do povo brasileiro tenha a punição que merece – e que pague pelos estragos que fez aos prédios da República, às obras de arte, ao mobiliário e aos diversos trabalhos de grandes artistas nacionais que foram danificados.
Uma coisa é certa: a memória das obras de Di Cavalcanti, de Athos Bulcão e dos demais artistas representados nas coleções do Palácio do Planalto e do Senado Federal está gravada na história, em sua grandeza. Quanto à horda fascista, não a de uma massa de manobra que roubou um rápido protagonismo, mas que será invariavelmente condenada ao esquecimento e à desonra.