Por Maurette Brandt, jornalista
Era um sábado chatinho, sem sol nem chuva, um desses dias em que o Rio não resplandece: apenas acompanha, meio desanimado, o cinza de certas tardes que não visitam o mar. De repente, o telefone tocou. Era o Carlos Alberto Loffler, amigão de todas as horas. “Menina, vou jantar com uns amigos. Vem pra cá.”
Opa – as cores do dia começavam a mudar, né não? O Carlos me ou o endereço de um lugar elegante no Leblon, cujo nome a minha memória teima em negar agora. Paciência. Peguei meu 584 em Laranjeiras e aportei bem perto do restaurante, toda feliz. Lá estava o bom Carlos, o cronista de enorme poética que conheci lendo a Tribuna da Imprensa – e que, além de amigo, tornou-se a minha mais importante referência no jornalismo. Naquela época, a palavra “mentor” não estava na moda, mas ele era mais ou menos isso pra mim.
A mesa era razoavelmente grande. – Chamei a Wan também – me contou Carlos, enquanto eu falava com o Fernando Barbosa Lima e outras pessoas. - Você conhece o Jô, não? -perguntou o Carlos, referindo-se a ninguém menos que Jô Soares, que estava do lado do Fernando. – Claro! - respondi, envergando a minha melhor naturalidade, e estendi a mão. Imagina....
Entre os risos e brincadeiras que rolavam na mesa, eu incentivava discretamente o Carlos a comer, nem que fosse um pastelzinho. Ele era difícil de comer, mas eu sempre insistia com jeito e acabava conseguindo alguma coisa.
Pouco depois a porta se abre e nossa elegante amiga Wan desponta no recinto. Desponta, aparece e desaparece, tudo isso em segundos! Pois não é que tropeçou no degrauzinho traiçoeiro da escada e levou um tombo daqueles?
Foi um corre-corre só. Garçons, mâitre, amigos, todos corremos pra ela. Um galo começava a ensaiar sua melodia, crescendo a olhos vistos na testa. – Traz uma faca pra colocar em cima! – dizia um. – Traz água pra ela, pedia outro. Por fim, lhe deram uma confortável cadeira. – Eu nem vi como foi – disse, já parcialmente refeita, mas olhando de cara feia para a protuberância que lhe ensombrecia a testa. – Quer um uísque? - perguntou o Carlos, maroto. – Mas era só o que faltava, né, Carlos? – sorriu a amiga. – Não, tou mais pra água tônica, nessa altura – declarou.
Observei o Jô, de soslaio. Era discreto e muito simpático. O grupo todo se conhecia, as piadinhas nem sempre eram inspiradoras, mas todos se divertiam. Enquanto isso, chega à nossa mesa um cavalheiro que também estava jantando ali e se dirigiu à Wan: - Oi, desculpe, eu sou médico. Vi você cair e vim ver se você precisa de alguma coisa.
A essa altura, todos se voltaram para o rapaz, muito agradecidos: – Um médico? Puxa, rapaz, que gentileza! Muito obrigado! – Foi até aplaudido, por sinal.
O médico examinou a testa da Wan, recomendou que usasse uma pomada mais tarde, tirou sua pressão e, como viu que estava bem, já ia voltar pra sua mesa, mas a turma não deixou de jeito nenhum. - Senta aqui com a gente, rapaz! Está com quem?
- Com a minha esposa, ali – mostrou.
- Ah, vai buscar ela e vem sentar com a gente!
O médico, que mais tarde soubermos ser do interior, não cabia em si. Trouxe a esposa e aí o círculo se expandiu. Todos queriam saber quem ele era, o que fazia na cidade etc. Aos poucos o rapaz foi se soltando e provou ser um bom contador de histórias – e de copos também. Conversava, ria, bebia – e bebia.
Num dado momento chega o Fernando Pamplona, com sua imponente figura e respeitável vozeirão: - Ô Carlos Alberto, o que é que você está aprontando hoje?
- Eu? – deu de ombros o Carlos. – Ah, não sei, com essa cara.... riu-se o Pamplona.
- Ô Fernando – disse o outro Fernando, o Barbosa Lima. – Como é que anda o Carnaval? – brinca. – Ih, tá longe! Mas Fernando, você precisa cuidar mais do Abertura, viu? Tem aparecido cada coisa, meu querido, que acho que você não está vendo direito não!
Fernando Barbosa Lima só ria. E o jovem médico só bebia. De repente, era o rei da roda: viajava nas nuvens e não parava de falar! – Meu Deus, disse o Carlos. – Ninguém imaginava que esse cara ia ficar tão chato! – amarrou a cara. – Não liga não, Carlos Alberto. Ele nunca viu tanto artista junto na vida dele – observou a Wan, cujo galo já declinava a olhos vistos. – Só está deslumbrado, nada mais.
O Jô, que estava a quatro corpos de distância de mim, quase em diagonal, sorria como o gentleman que era. – Isso faz parte – brincou. – Amanhã vai achar que sonhou.
Por fim, a esposa se tocou e acabou convencendo o marido a se despedir. Só que ele quase acabou no chão, que nem a Wan, tão desequilibrado estava. Mas, com o amparo da mulher, superava lentamente a crise.
- Imagina, hein, Wan? E se o seu médico fosse um cirurgião? – disse o Fernando.
- Coitado, gente. Ele só quis ajudar.... - observou ela.
- Tá, mas e se ele tivesse que fazer uma cirurgia na sua testa? – provocou o Carlos.
- Ah, mas não ia mesmo! – empinou-se. – Melhor seria o Miguel Couto – sentenciou Wan, sob os risos e aplausos da mesa inteira. O Jô ria com gosto. E a conversa continuou, até mais não poder.
Talvez esta seja mais uma história do Rio, uma foto de bar. Mas esse episódio visitou a minha mente logo depois que soube na morte do Jô Soares. E me deu vontade de pensar nele, de lembrar dos detalhes, lhe dar forma, como meio de reinventar ausências.
Carlos Alberto Loffler morreu em 1987, poucos dias depois que o visitei, na casa da mãe, para contar que estava grávida de minha única filha, Luísa. Fernando Barbosa Lima, seu melhor amigo e parceiro em direção de TV, faleceu anos mais tarde, quando eu estava trabalhando no Festival Cinemúsica, em Conservatória. Fernando Pamplona, grande cenógrafo e um dos reis da Avenida, também nos deixaria, anos mais tarde. E agora, o Jô de todos nós. Talvez as ausências tenham me estimulado a contar alguma coisa engraçada de verdade, algo que aconteceu entre amigos, numa tarde-noite pacata e sem graça, no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon, com todos eles vivos, presentes e atuantes. Que seja esta uma homenagem ao Jô, que acaba de partir, e aos outros artistas e amigos que se divertiram juntos e riram muito, naquele dia.